Fotos: Vinicius Becker (Diário)
Eles estão nas calçadas da Avenida Rio Branco, sob marquises e em abrigos nas praças e prédios abandonados. Já não é raro ver colchões, cobertores e barracas improvisadas, especialmente na região central. Invisíveis para muitos, o número de pessoas em situação de rua cresceu 56% em Santa Maria desde 2023. Diante disso, mais uma vez, o cenário acende novas discussões sobre o tema. Projetos de lei, abaixo-assinados e articulações entre Executivo, Legislativo e entidades locais buscam respostas para a situação que, diariamente, atinge a segurança e a dignidade de quem vive nas ruas do centro da cidade.
Para entender essa realidade, o Diário fez um panorama das novas, e velhas, discussões sobre a problemática. Também traçou um perfil de quem vive nas ruas e, com o auxílio de especialistas, apontou as principais falhas no acolhimento e o que pode ser feito para evitar que esse número continue crescente.
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Discussões na Câmara, na OAB e no Executivo
Na manhã desta terça-feira (16), o prefeito Rodrigo Decimo (PSD) discutiu, com entidades locais, ações voltadas às pessoas em situação de rua. Implantação de um Centro de Referência Especializado para acolhimento e equipes de saúde mental foram algumas das ideias apresentadas. Apesar dos projetos comentados pelo Executivo, nada saiu do papel.
A preocupação com o tema também chega ao Legislativo. O vereador Marcelo Bisogno (União Brasil) protocolou na Câmara Municipal um projeto sugestão que prevê a criação do programa “Acolher e Reabilitar”, com medidas voltadas ao acolhimento, reabilitação e reinserção social dessa população. No caso dos projetos de sugestão, as propostas são encaminhadas direto ao Executivo, sem passar por votação em plenário.
Segundo o vereador, o movimento surgiu a partir de um conjunto de preocupações que vêm sendo compartilhadas por comerciantes, moradores e entidades da cidade. Nesse sentido, também foi feito um abaixo-assinado que já ultrapassa mil assinaturas. O programa “Acolher e Reabilitar” inclui cadastramento da população em situação de rua, diagnóstico, criação de um canal de atendimento 24 horas, campanhas educativas e parcerias com instituições para atividades de reinserção social e encaminhamento para tratamento de saúde.
– Hoje, há mais de 400 pessoas vivendo nas ruas da cidade, muitas com problemas graves de saúde mental, dependência de álcool e drogas. Parte dessas pessoas não é de Santa Maria e vem para cá por saber que aqui há distribuição de refeições diárias. Precisamos entender quem são essas pessoas e oferecer algo melhor do que o abandono – afirma Bisogno.
Para o vereador, o projeto visa tanto garantir dignidade às pessoas em situação de rua quanto segurança à população. A iniciativa não é isolada. Ele relata que começou a buscar referências em outras cidades brasileiras, como Chapecó e Balneário Camboriú. Também conta que conversou com moradores, lojistas, donos de restaurantes e pessoas que vivem nas ruas.
– Há cerca de 15 dias, um grupo de empresários e lojistas me procurou pedindo uma ação mais contundente. Foi ali que decidimos agir, construindo um caminho que envolvesse todos os setores – explica.
Audiência pública
Para tratar a demanda, há cerca de um mês, foi realizada uma audiência pública na sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) com a presença do Ministério Público e representantes do Executivo e de entidades locais. A presidente da OAB, Juliana Korb, afirmou que o objetivo é, e vem sendo, buscar soluções que possam ser construídas de forma coletiva:
– A audiência deu origem a esse movimento atual, que visa ampliar ainda mais o debate e fomentar ações práticas, como o abaixo-assinado e a mobilização da sociedade civil, que também é corresponsável pela nossa cidade. Mais do que fiscalizar e cobrar o poder público, é papel das instituições e da sociedade colaborar, apresentar alternativas e buscar soluções. Infelizmente, estamos diante de um problema de caráter humano, de pessoas que perderam completamente sua dignidade. Isso nos atinge de forma direta e sensível.

A partir da audiência, foi formado um grupo de trabalho com instituições e órgãos competentes. Ainda de acordo com a presidente da OAB, a busca é por locais para ampliar o acolhimento. Isso porque uma das principais entraves apontados por Juliana é o modelo atual de acolhimento em Santa Maria, que, segundo ela, não contempla a maioria dos moradores de rua, especialmente aqueles com dependência química.
– A maioria dos moradores de rua está em situação de drogadição e alcoolismo, e o sistema atual não acolhe essas pessoas. Então, é preciso oferecer uma primeira oportunidade de acolhimento, que inclua, inclusive, a possibilidade de tratamento e de encaminhamentos – completa.
A presidente da OAB sugeriu, ainda, a criação de patrulhas de acolhimento, que iriam além da entrega de alimentos, ao realizar abordagens humanizadas, encaminhamentos para tratamento e avaliações de saúde mental.
Prefeitura fala sobre ações para atendimento à população em situação de rua
Em entrevista ao Diário, o secretário municipal de Desenvolvimento Social, Juliano Soares, afirmou que a prefeitura tem trabalhado em diversas frentes para melhorar o atendimento à população em situação de rua. Entre as medidas destacadas estão a criação de um comitê específico, a elaboração de um plano municipal e a previsão de implantação de um Centro Pop (Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua) na cidade.
Em Santa Maria, são três casas de passagem que ofertam, no total, 90 vagas. Mas, conforme o secretário, nem todas as pessoas aceitam acolhimento institucional, principalmente por conta das regras existentes nesses locais.
– Infelizmente, temos que respeitar a autonomia dessas pessoas. Eles têm esse direito – afirmou.
Nesse sentido, segundo o secretário, outra limitação enfrentada pelo município é a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 976, do Supremo Tribunal Federal, que proíbe a remoção forçada e a apreensão de pertences de pessoas em situação de rua. Apesar disso, o gestor afirmou que a prefeitura busca alternativas legais e humanizadas para lidar com o tema.
Já a presidente da OAB, ao mencionar a ação que proíbe a retirada das pessoas em situação de rua, afirma que é preciso ir além. A proposta, a partir da audiência, é fazer uma abordagem humanizada e o ato de oferecer um local onde possam tomar um banho, se alimentar e receber cuidados.
– De fato, existe uma ação que proíbe a retirada compulsória dos moradores em situação de rua. Não se pode forçá-los a sair, caso não queiram. No entanto, o que construímos, de forma coletiva na audiência pública, é a necessidade de uma abordagem multidisciplinar, com oferta de acolhimento. Mesmo que a retirada compulsória seja proibida, opções dignas precisam ser oferecidas. Não é admissível, nem humano, que essas pessoas permaneçam nas ruas sem qualquer assistência.

Medidas
O secretário também afirma que um comitê municipal sobre população em situação de rua foi criado em abril e já realizou quatro reuniões. Ainda neste ano, a prefeitura pretende colocar em operação um consultório de rua, ambulatório móvel que deve atuar em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde nas abordagens de pessoas em situação de vulnerabilidade. Também está previsto o início do projeto “Água, Vida e Cidadania”, da Igreja Anglicana da Rio Branco, com recursos federais e apoio do município, voltado ao acolhimento dessa população.
Secretário contesta dado de vereador
Em relação ao número de pessoas vivendo nas ruas, o secretário contestou a estimativa divulgada por vereadores, de que haveria cerca de 400 pessoas em situação de rua no município. Segundo ele, esse número corresponde ao acumulado de registros no Cadastro Único ao longo de quatro anos. A estimativa da prefeitura é de 140 a 150 pessoas, atualmente.
O caso que acendeu o alerta
O “sinal vermelho”, segundo o vereador Marcelo Bisogno, foi um episódio ocorrido na esquina da Rua Floriano Peixoto, durante o dia, em que uma pessoa em situação de rua praticava gestos obscenos na entrada de uma escola, diante de pais e crianças.
– Foi ali que percebi que não dava mais para esperar. Se a cidade não agir agora, vamos conviver com situações ainda mais graves – afirmou.
Ele destaca outros episódios recentes que demonstram a gravidade da situação:
– Na última semana, vimos uma pessoa escondida em sacos de lixo ser presa pela Brigada Militar. Também recebi relatos de comerciantes que tiveram que deixar seus pontos por pressão de quem vive na rua.
O fato também foi mencionado pela presidente da OAB. Ela afirmou que a entidade recebeu denúncias de pais de alunos sobre situações de insegurança nas proximidades de escolas no centro da cidade.
– Recebemos relatos de pais que transferiram seus filhos de escolas por medo. Também fomos procurados por grupos organizando abaixo-assinados e pedidos de providências. A situação precisa ser enfrentada com firmeza e responsabilidade – disse.
Ela enfatizou que, mesmo com as limitações para retirada de moradores das ruas, qualquer prática ilegal, como atos obscenos ou uso de drogas em via pública, deve ser denunciada e pode ser alvo de ação policial.
O que diz a prefeitura
Sobre denúncias de atos obscenos ocorridos nas imediações do Colégio Marista, o secretário informou que as imagens foram solicitadas ao CIOSP (Centro Integrado de Operações de Segurança Pública) mas nada foi localizado até o momento.
– Recebemos relatos no mesmo dia. Se pegarmos alguém no ato, é considerado prisão em flagrante, pois é atentado violento ao pudor.

Apoio e suporte em Santa Maria
Confira os serviços de assistência e casas de passagem:
Creas
- Endereço – Rua Doutor Astrogildo de Azevedo, 23, Centro
- Telefones – (55) 3921-7282 e 3921-7279
- WhatsApp – (55) 99129-9183 (apenas para o envio de mensagens com atendimento das 8h às 16h)
- E-mail – [email protected]
Casa de Passagem Mundo Novo – unidade masculina
- Endereço: Rua Nelson Durand, 390
- Bairro: Nossa Senhora das Dores
- Telefone: (55) 3211-2659
Casa de Passagem Mundo Novo – unidade feminina
- Endereço: Rua Silva Jardim, 1.397
- Bairro: Nossa Senhora do Rosário
- Telefone: (55) 3347-4849
Casa de Passagem Maria Madalena
- Endereço: Rua Ernesto Becker, 224
- Bairro: Nossa Senhora do Rosário
- Telefone: (55) 99608-4625
O aumento está nas ruas, a solução ainda não
Luiz* tem 53 anos e há três vive nas ruas. Boa parte da vida foi em Santa Maria, já que saiu de Rio Grande e veio para o centro do Estado ainda pequeno. O álcool e as drogas o levaram à condição. Hoje, a fonte de renda tem sido a reciclagem.
– Com 50 anos, eu caí nessa vidinha aí – conta.
Questionado se já frequentou casas de passagem, disse que não:
– Ainda não passei porque nunca fui até uma casa de passagem. E eu sei que tem, mas na rua tenho mais liberdade. O que nos falta é banho e um banheiro.

Já Alexandre*, 64 anos, sente falta de poder trabalhar. Há quase dois anos, sofreu um acidente com o caminhão da empresa que trabalhava e, desde então, conta que vive nas ruas. Com sequelas e sem amparo dos familiares, não conseguiu retomar a rotina.
– Fiquei um tempo no hospital para fazer tratamento e, aí, terminou o dinheiro. Sou viúvo e não tenho o apoio da minha família, então estou aqui. Estou lutando. Até fiquei um tempo na casa de passagem, mas acabou (o tempo).
Natural de Santa Maria, o homem conta que vive com um auxílio do governo federal, que boa parte gasta com o valor dos medicamentos que precisa ingerir.
– Só em medicamentos dá R$ 287. Não dá nem para pagar um aluguelzinho. Se desse, não estaria aqui – afirma.
Luiz* e Alexandre* se somam ao número de pessoas em situação de rua em Santa Maria. Segundo dados da Secretaria Municipal de Assistência Social, com base no CadÚnico, o crescimento foi de 56% desde 2023. A informação é reforçada por quem atua diretamente com essa população: o projeto UFSM nas Ruas, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), que há sete anos trabalha com pessoas em situação de rua e catadores de materiais recicláveis no município. O foco da iniciativa tem sido a construção de políticas públicas, conforme explica a coordenadora Amara Lúcia Holanda Tavares Battistel:
– O projeto começou em 2018, a partir de uma ação social no Café Solidário, e logo sentimos a necessidade de ir além da distribuição de alimentos. Passamos a pensar em como a universidade poderia contribuir para que essas pessoas deixassem de ser tratadas apenas como objeto de caridade e fossem reconhecidas como sujeitos de direitos.
Em entrevista ao Diário, a professora explicou que o aumento já era perceptível antes mesmo da pandemia, mas se intensificou com a crise sanitária e, mais recentemente, com as enchentes que afetaram o Estado.
Apesar dos números do CadÚnico, Amara alerta que o total de pessoas em situação de rua é certamente maior, já que muitos ainda não estão cadastrados. A contagem oficial, segundo ela, é dificultada pela metodologia dos censos tradicionais, que consideram apenas domicílios fixos.
– Esse aumento é certamente maior do que o registrado oficialmente, porque muitos não estão cadastrados. A fila da distribuição de alimentos, por exemplo, que antes girava em torno de 30, 50 marmitas, hoje passa de 100. E sabemos que há muitos que nem sequer acessam esse tipo de ajuda – destacou.
Quem são essas pessoas?
De acordo com a professora, a maioria das pessoas em situação de rua é composta por homens entre 30 e 50 anos, embora haja aumento significativo de idosos. Os motivos que os levam à rua são diversos, mas geralmente envolvem ruptura de vínculos familiares, desemprego e, em alguns casos, o uso abusivo de álcool e outras drogas.
Além dos fatores individuais, há causas estruturais, como racismo, desigualdade social e falta de oportunidades.
– Nem toda pessoa em situação de rua é usuária de drogas, mas muitas acabam recorrendo ao álcool ou outras substâncias depois de já estarem na rua, como forma de suportar a dor e o frio. Há uma desagregação social. E há uma população majoritariamente negra, reflexo direto do racismo estrutural e das heranças da escravização que ainda marcam nossa sociedade – explica Amara.

Estão na rua porque querem?
Em resposta a alegações de que muitas dessas pessoas "não querem sair da rua", a professora sugere cautela na interpretação:
– É muito fácil julgar. A casa de passagem tem regras, como a proibição de entrada alcoolizado, que muitas vezes afastam quem já enfrenta o vício. Não estou dizendo que não deve haver regras, mas sim que é preciso escutá-los, entender por que preferem dormir na rua a ter um teto e uma cama. Essa pergunta precisa ser feita com empatia.
Amara destaca que mesmo antes desse crescimento, as vagas já eram insuficientes, e o número de acolhimentos não aumentou na mesma proporção da demanda. Para ela, o problema precisa ser enfrentado de forma articulada e intersetorial.
Já sobre denúncias recentes de comportamento inadequado por parte de pessoas em situação de rua próximo a escolas, como atos obscenos relatados à OAB, a professora lamenta, mas alerta contra o uso desses casos isolados para estigmatizar toda uma população:
– Trabalho com isso desde 2018 e foi a primeira vez que ouvi um relato desse tipo. A gente não pode transformar uma situação grave, que deve ser apurada, em justificativa para limpar a cidade dessas pessoas. Isso não é solução, é empurrar o problema para debaixo do tapete.
O caminho para quem vive nas ruas
Para a professora, a solução passa por um esforço conjunto entre poder público, universidades, sociedade civil e entidades de classe. É preciso garantir políticas públicas contínuas, e estruturadas – que não apenas acolham, mas reintegrem essas pessoas à sociedade com dignidade.
– A situação de rua é complexa, e não tem solução mágica. Mas podemos enfrentá-la com políticas sérias, baseadas em dados reais, respeito e empatia. Não se trata apenas de oferecer um teto, mas de oferecer dignidade e oportunidade – pontua Amara.
A professora também pede mais responsabilidade coletiva e empatia sobre o tema:
– O que deveria nos chocar mais não é o fato da cidade estar 'enfeiada'. É ver um ser humano deitado no chão, no frio, com um cachorro do lado, sem proteção nenhuma. Santa Maria precisa reunir pessoas comprometidas com o tema para implementar de fato as políticas públicas que já existem no papel.
*Para preservar o nome das pessoas entrevistadas, foram utilizados nomes fictícios na reportagem
*Colaboraram Rian Lacerda, Rogério Kerber e Vitória Sarturi
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